segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Escritor do mês | janeiro

Júlio Dinis

(1839 / 1871)


Escritor português, Júlio Dinis é o pseudónimo literário mais conhecido de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, entre os vários que o autor adotou ao longo da sua carreira literária. Nasceu a 14 de novembro de 1839, no Porto, e morreu a 12 de setembro de 1871, na mesma cidade. Licenciou-se em Medicina, mas dedicou-se sobretudo à literatura, podendo ser considerado como um escritor de transição, situado entre o fim do Romantismo e o início do Realismo. É autor de poesias, peças de teatro, textos de teorização literária, mas destaca-se sobretudo como romancista, deixando uma produção original e inovadora, que contribuiu grandemente para a criação do romance moderno em Portugal.
Órfão de mãe aos seis anos, estudou na Academia Politécnica a partir de 1853 e ingressou na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, em 1855, ano em que dois irmãos seus morrem, vítimas da tuberculose. Por essa altura, entrou para um grupo de teatro, o "Cenáculo", e escreveu as suas primeiras peças de teatro, que viriam a ser postumamente reunidas nos três volumes do Teatro Inédito, em 1946-1947. Em 1860, ano da morte de Soares de Passos, abandonou o "Cenáculo" e estreou-se na revista A Grinalda com poesias românticas que viriam a fazer parte das Poesias (1870). Em 1861, concluiu o curso de Medicina. Nos dois anos seguintes, publicou em folhetim no Jornal do Porto alguns dos contos que seriam postumamente compilados em Serões da Província, assinando ora Júlio Dinis, ora Diana de Aveleda. Em 1863, passou uma temporada em casa de familiares, em Ovar, para se tratar da tuberculose, declarada um ano antes. Aí, descobre os encantos da vida rural, que estará presente em grande parte das suas obras - Júlio Dinis foi principalmente um escritor de espaços, oferecendo-nos quadros onde revela uma preocupação pela veracidade nas descrições das aldeias, dos ambientes e caracteres, e na evolução da intriga. O seu primeiro romance, As Pupilas do Senhor Reitor, é publicado em folhetins no Jornal do Porto, em 1866, e em volume um ano depois. Seguem-se-lhe, em 1868, Uma Família Inglesa (retrato da vida citadina, dando especial relevo à pequena burguesia nascente) e A Morgadinha dos Canaviais, no mesmo ano em que As Pupilas do Senhor Reitor, adaptadas ao teatro, são representadas no Teatro da Trindade. Em 1869, parte para a Madeira, em busca de uma melhoria do seu estado de saúde, regressando, um ano depois, ao Porto, onde publica os Serões da Província. No mesmo ano, concluiu o seu quarto romance, Os Fidalgos da Casa Mourisca, cujas provas tipográficas já não acabará de rever. Em 1871, no mesmo ano em que As Pupilas do Senhor Reitor são representadas no Rio de Janeiro, assinalando já a celebridade do escritor além fronteiras, morre prematuramente, vítima da tuberculose. Em 1874, surge o volume póstumo das Poesias e, em 1910, a compilação de textos narrativos e teóricos Inéditos e Esparsos.

Júlio Dinis - cujo conhecimento da língua e da cultura inglesas (a sua mãe era de ascendência irlandesa) lhe possibilitou a leitura de novelistas como Jane Austen, Richardson, Thackeray e Dickens, cujas obras são marcadas pelo realismo psicológico - deixou uma produção romanesca eivada de componentes realistas e românticos. Assim, se a sua conceção do romance, exposta em Inéditos e Esparsos, baseada na lentidão da narrativa, na averiguação da verdade, no tratamento de temas familiares e quotidianos, o aproxima da estética realista, a idealização do campo, da mulher, da família, a tendência para a solução harmoniosa dos conflitos, o pendor moralizador dos desfechos das intrigas, o otimismo do seu ideal social, em que felicidade amorosa e harmonização social são indissociáveis, têm ressonâncias românticas.
Júlio Dinis in Artigos de apoio Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2018. (Adaptado)

O honrado chefe da casa Whitestone tinha dois filhos: uma gentil lady, mimosa planta do Norte transplantada, aos dois anos, para o nosso clima, e um rapaz, mais novo do que ela, e nascido já em Portugal.

Eram Jenny e Carlos.

Jenny era uma destas jovens inglesas cuja suavidade e correcção de contornos, alvura e delicadeza de tez e puro dourado dos cabelos lhes dão uma aparência tão subtil e vaporosa, e, quase direi, tão celestial, que se espera a cada passo vê-las desprenderem-se da terra e dissiparem-se, como instantânea visão luminosa, diante dos olhos, que por momentos ofuscaram.

Delicadas, como arminho, que chega quase a subtrair-se à sensação do tacto, de delicado que é, estas poéticas organizações setentrionais possuem tanto de vago, tanto de material, que, junto delas, apodera-se de nós, entes profanos e grosseiros, certo invencível constrangimento, como se receássemos com um sopro desvanecê-las, crestá-las com um olhar, maltratá-las com um gesto.

Os desejos não voam até ali; rodeia-as uma atmosfera de virginal castidade, no seio da qual esses filhos alados da imaginação abatem-se asfixiados.

Se no azul meigo dos olhos de Jenny se não concentrava o fogo das paixões de um coração ardido, nem se descobria a cintilação denunciadora de fantasias exaltadas, havia nele não sei que misteriosa e suave luz, como se de reflexo levado para ali do mais íntimo de alma; os lábios, delgados e levemente compridos, não se agitavam sob o império de tumultuosos sentimentos, mas fixavam-se em contínuo sorriso, expressivo de afabilidade e de brandura, prometedor de plácidas mas duradouras felicidades; o seio, sempre modestamente afogado no vestido liso e singelo, embora não tivesse o arfar voluptuoso que arrebata as imaginações, animava-se da ligeira ondulação, denunciadora do sereno sentir da mulher, a quem Deus confia os destinos da família(…)

A estatura esbelta da jovem inglesa, o andar, sem os requebros lânguidos das nossas elegantes, a fronte pura e de gracioso modelo, coroada por um diadema de formosos e desadornados cabelos louros, o olhar entre afável e melancólico, a voz meigamente sonora e cadenciada, tudo enfim, de modo inexplicável, como variadas frases de misteriosa linguagem da beleza, denunciava os encantos, as doçuras daquele carácter feminino, tão alheio a fraquezas mundanas, que mais se dissera angélico. (…)

Carlos era, sob muitos respeitos, diferente da irmã.

Inglês pelo sangue, meridional pelo clima, onde vira, a primeira vez, a luz do dia, onde passara a infância, onde sentira as primeiras comoções da adolescência, o despertar da vida do coração, tinha um carácter que se ressentia desta, de alguma sorte, dupla nacionalidade.

Da Península recebera o entusiasmo, a viveza de imaginação, a impetuosidade de sentimentos, que raras vezes reprimia; vinham-lhe da Grã-Bretanha a força de vontade, a pertinácia, o estoicismo, com que, em certas ocasiões, surpreendia a quantos julgavam conhecê-lo; vinham-lhe até, da mesma fonte, algumas excentricidades de manifesta herança paterna – eficaz inoculação de britanismo, que não lhe consentiria mentir à origem, se alguma vez o tentasse.

Ainda que algum tanto estouvado, não deixava por isso Carlos de possuir um generoso e compassivo coração, alma sensível a todos os infortúnios, olhos a que a piedade não permitia serem estranhas as lágrimas.

Se, por acções mal refreadas, por palavras irreflectidas, as fazia também verter, era ele o primeiro a acusar-se, a compadecer-se, a procurar enxugá-las por toda a qualidade de sacrifícios.

Capaz de heróica abnegação em bem dos outros, se frequentemente se esquecia de benefícios recebidos, como se poderia censurá-lo, quando, habituado a realizá-los maiores, não exigia também dos favorecidos a gratidão em recompensa, parecendo até desconhecer os direitos que tinha a ela?

Corajoso até à imprudência, liberal até à prodigalidade, sincero até à rudeza desatenciosa, os seus maiores defeitos não passavam de nobres qualidades, levadas ao excesso.

O que ele não sabia, ou não podia, era conservá-las no ordeiro meio termo, tão respeitado pela sociedade.

O sangue dos vinte anos fazia doidejar aquela cabeça; os instintos generosos faziam o tormento daquele coração, porque se uma, em momentos de exaltação, conseguia romper com as generosas repugnâncias do outro, a reacção era infalível, e este, mais tarde, obrigava-a a arrepender-se, descobrindo, e exagerando até, as nem sempre remediáveis consequências dos seus desvarios e caprichos.

Carlos era destes homens que encerram e alimentam no próprio seio o seu principal inimigo.

Entre Carlos Whitestone e o pai existia um cordial e puro afecto, ainda que disfarçado, em ambos eles, sob aparências de frieza e de reserva da mais genuína índole britânica.

Uma Família Inglesa, cap. II


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