Júlio
Dinis
(1839 / 1871)
Escritor português, Júlio
Dinis é o pseudónimo literário mais conhecido de Joaquim Guilherme Gomes
Coelho, entre os vários que o autor adotou ao longo da sua carreira literária.
Nasceu a 14 de novembro de 1839, no Porto, e morreu a 12 de setembro de 1871, na
mesma cidade. Licenciou-se em Medicina, mas dedicou-se sobretudo à literatura,
podendo ser considerado como um escritor de transição, situado entre o fim do
Romantismo e o início do Realismo. É autor de poesias, peças de teatro, textos
de teorização literária, mas destaca-se sobretudo como romancista, deixando uma
produção original e inovadora, que contribuiu grandemente para a criação do
romance moderno em Portugal.
Órfão de mãe aos seis anos,
estudou na Academia Politécnica a partir de 1853 e ingressou na Escola
Médico-Cirúrgica do Porto, em 1855, ano em que dois irmãos seus morrem, vítimas
da tuberculose. Por essa altura, entrou para um grupo de teatro, o
"Cenáculo", e escreveu as suas primeiras peças de teatro, que viriam
a ser postumamente reunidas nos três volumes do Teatro Inédito, em 1946-1947. Em 1860, ano da morte de Soares de
Passos, abandonou o "Cenáculo" e estreou-se na revista A Grinalda com
poesias românticas que viriam a fazer parte das Poesias (1870). Em 1861,
concluiu o curso de Medicina. Nos dois anos seguintes, publicou em folhetim no
Jornal do Porto alguns dos contos que seriam postumamente compilados em Serões da Província, assinando ora Júlio
Dinis, ora Diana de Aveleda. Em 1863, passou uma temporada em casa de
familiares, em Ovar, para se tratar da tuberculose, declarada um ano antes. Aí,
descobre os encantos da vida rural, que estará presente em grande parte das
suas obras - Júlio Dinis foi principalmente um escritor de espaços,
oferecendo-nos quadros onde revela uma preocupação pela veracidade nas
descrições das aldeias, dos ambientes e caracteres, e na evolução da intriga. O
seu primeiro romance, As Pupilas do
Senhor Reitor, é publicado em folhetins no Jornal do Porto, em 1866, e em
volume um ano depois. Seguem-se-lhe, em 1868, Uma Família Inglesa (retrato da vida citadina, dando especial
relevo à pequena burguesia nascente) e A
Morgadinha dos Canaviais, no mesmo ano em que As Pupilas do Senhor Reitor, adaptadas ao teatro, são representadas
no Teatro da Trindade. Em 1869, parte para a Madeira, em busca de uma melhoria
do seu estado de saúde, regressando, um ano depois, ao Porto, onde publica os Serões da Província. No mesmo ano,
concluiu o seu quarto romance, Os
Fidalgos da Casa Mourisca, cujas provas tipográficas já não acabará de
rever. Em 1871, no mesmo ano em que As
Pupilas do Senhor Reitor são representadas no Rio de Janeiro, assinalando
já a celebridade do escritor além fronteiras, morre prematuramente, vítima da
tuberculose. Em 1874, surge o volume póstumo das Poesias e, em 1910, a compilação de textos narrativos e teóricos Inéditos e Esparsos.
Júlio Dinis - cujo
conhecimento da língua e da cultura inglesas (a sua mãe era de ascendência
irlandesa) lhe possibilitou a leitura de novelistas como Jane Austen,
Richardson, Thackeray e Dickens, cujas obras são marcadas pelo realismo
psicológico - deixou uma produção romanesca eivada de componentes realistas e
românticos. Assim, se a sua conceção do romance, exposta em Inéditos e Esparsos,
baseada na lentidão da narrativa, na averiguação da verdade, no tratamento de
temas familiares e quotidianos, o aproxima da estética realista, a idealização
do campo, da mulher, da família, a tendência para a solução harmoniosa dos
conflitos, o pendor moralizador dos desfechos das intrigas, o otimismo do seu
ideal social, em que felicidade amorosa e harmonização social são
indissociáveis, têm ressonâncias românticas.
Júlio Dinis in Artigos de apoio Infopédia [em linha]. Porto: Porto
Editora, 2003-2018. (Adaptado)
O honrado chefe da casa
Whitestone tinha dois filhos: uma gentil lady, mimosa planta do Norte
transplantada, aos dois anos, para o nosso clima, e um rapaz, mais novo do que
ela, e nascido já em Portugal.
Eram Jenny e Carlos.
Jenny era uma destas jovens
inglesas cuja suavidade e correcção de contornos, alvura e delicadeza de tez e
puro dourado dos cabelos lhes dão uma aparência tão subtil e vaporosa, e, quase
direi, tão celestial, que se espera a cada passo vê-las desprenderem-se da
terra e dissiparem-se, como instantânea visão luminosa, diante dos olhos, que
por momentos ofuscaram.
Delicadas, como arminho, que
chega quase a subtrair-se à sensação do tacto, de delicado que é, estas
poéticas organizações setentrionais possuem tanto de vago, tanto de material,
que, junto delas, apodera-se de nós, entes profanos e grosseiros, certo
invencível constrangimento, como se receássemos com um sopro desvanecê-las,
crestá-las com um olhar, maltratá-las com um gesto.
Os desejos não voam até ali;
rodeia-as uma atmosfera de virginal castidade, no seio da qual esses filhos
alados da imaginação abatem-se asfixiados.
Se no azul meigo dos olhos de
Jenny se não concentrava o fogo das paixões de um coração ardido, nem se
descobria a cintilação denunciadora de fantasias exaltadas, havia nele não sei
que misteriosa e suave luz, como se de reflexo levado para ali do mais íntimo
de alma; os lábios, delgados e levemente compridos, não se agitavam sob o
império de tumultuosos sentimentos, mas fixavam-se em contínuo sorriso,
expressivo de afabilidade e de brandura, prometedor de plácidas mas duradouras
felicidades; o seio, sempre modestamente afogado no vestido liso e singelo,
embora não tivesse o arfar voluptuoso que arrebata as imaginações, animava-se
da ligeira ondulação, denunciadora do sereno sentir da mulher, a quem Deus
confia os destinos da família(…)
A estatura esbelta da jovem
inglesa, o andar, sem os requebros lânguidos das nossas elegantes, a fronte
pura e de gracioso modelo, coroada por um diadema de formosos e desadornados
cabelos louros, o olhar entre afável e melancólico, a voz meigamente sonora e
cadenciada, tudo enfim, de modo inexplicável, como variadas frases de
misteriosa linguagem da beleza, denunciava os encantos, as doçuras daquele
carácter feminino, tão alheio a fraquezas mundanas, que mais se dissera angélico.
(…)
Carlos era, sob muitos
respeitos, diferente da irmã.
Inglês pelo sangue,
meridional pelo clima, onde vira, a primeira vez, a luz do dia, onde passara a
infância, onde sentira as primeiras comoções da adolescência, o despertar da
vida do coração, tinha um carácter que se ressentia desta, de alguma sorte,
dupla nacionalidade.
Da Península recebera o
entusiasmo, a viveza de imaginação, a impetuosidade de sentimentos, que raras
vezes reprimia; vinham-lhe da Grã-Bretanha a força de vontade, a pertinácia, o
estoicismo, com que, em certas ocasiões, surpreendia a quantos julgavam
conhecê-lo; vinham-lhe até, da mesma fonte, algumas excentricidades de
manifesta herança paterna – eficaz inoculação de britanismo, que não lhe
consentiria mentir à origem, se alguma vez o tentasse.
Ainda que algum tanto
estouvado, não deixava por isso Carlos de possuir um generoso e compassivo
coração, alma sensível a todos os infortúnios, olhos a que a piedade não
permitia serem estranhas as lágrimas.
Se, por acções mal refreadas,
por palavras irreflectidas, as fazia também verter, era ele o primeiro a
acusar-se, a compadecer-se, a procurar enxugá-las por toda a qualidade de
sacrifícios.
Capaz de heróica abnegação em
bem dos outros, se frequentemente se esquecia de benefícios recebidos, como se
poderia censurá-lo, quando, habituado a
realizá-los maiores, não exigia também dos favorecidos a gratidão em
recompensa, parecendo até desconhecer os direitos que tinha a ela?
Corajoso até à imprudência,
liberal até à prodigalidade, sincero até à rudeza desatenciosa, os seus maiores
defeitos não passavam de nobres qualidades, levadas ao excesso.
O que ele não sabia, ou não
podia, era conservá-las no ordeiro meio termo, tão respeitado pela sociedade.
O sangue dos vinte anos fazia
doidejar aquela cabeça; os instintos generosos faziam o tormento daquele
coração, porque se uma, em momentos de exaltação, conseguia romper com as
generosas repugnâncias do outro, a reacção era infalível, e este, mais tarde,
obrigava-a a arrepender-se, descobrindo, e exagerando até, as nem sempre
remediáveis consequências dos seus desvarios e caprichos.
Carlos era destes homens que
encerram e alimentam no próprio seio o seu principal inimigo.
Entre Carlos Whitestone e o
pai existia um cordial e puro afecto, ainda que disfarçado, em ambos eles, sob
aparências de frieza e de reserva da mais genuína índole britânica.
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